Gulbenkian: on architecture and photography
José Neves
O título deste livro é Gulbenkian. A capa é ocupada integralmente por uma imagem sobre a qual nada está escrito, e Gulbenkian é a única palavra que podemos ler, a negro, sobre a lombada branca.
Começo, portanto, por falar da Gulbenkian. Mas a que é nos referimos exactamente quando dizemos Gulbenkian?
No princípio de todos os anos, faço sempre uma mesma pergunta aos meus novos alunos de arquitectura: “A que é que se referem quando dizem que gostam de um restaurante?” Porque é muito fácil perceber que, num restaurante, a comida pode ser maravilhosa e o espaço medonho ou vice-versa. Como um cinema pode ser magnífico e os filmes que nele passam serem péssimos; um concerto pode ser medíocre e a sala ter uma acústica exemplar; uma exposição ser importante e o sítio ser indiferente; ou uma cidade fantástica, quando se torna num cadáver ou num corpo conservado vivo artificialmente, pode continuar a ser, ainda assim, o mais belo corpo que se possa imaginar.
Enquanto arquitectos, não podemos ter muitas dúvidas sobre isto porque o que está ao nosso alcance, aquilo de que trata o nosso ofício, é fazer a arquitectura: isto é, projectar a organização do espaço e a qualificação dele, que, na melhor das hipóteses, resistirá, o melhor possível a tudo o que, na verdade, não podemos dominar ou prever efectivamente. E esta não-coincidência entre a natureza ou as qualidades do que acontece e do espaço em que acontece é, todos sabemos, frequente.
No caso da Gulbenkian, trata-se, pelo contrário, de uma coincidência rara. Ao longo da maior parte destes últimos 50 anos, alguém que se tenha referido à Gulbenkian pôde referir-se ao que acontece e, ao mesmo tempo e da mesma maneira, à arquitectura em que tudo acontece. Não posso, não quero, nem sequer sei como poderia falar aqui desse todo — da música, da dança, dos museus, das exposições, das conferências, do ócio, dos piqueniques.
Nasci e vivi sempre em Lisboa, tenho pouco mais ou menos a idade da Gulbenkian, cresci portanto com ela, e vou aqui referir-me apenas a três dívidas que tenho para com este todo que é a Gulbenkian — dívidas pessoais muito grandes, no sentido em que seria outro, se ela não existisse (sabendo que cada um de nós terá as suas próprias dívidas e que, todas somadas, fazem uma dívida colectiva, que é a que importa): os grandes Ciclos de Cinema organizados com João Bénard da Costa (neste auditório, sempre esgotado), sem os quais não teria aprendido a amar o Cinema como nunca mais deixei de amar; a grande exposição sobre a obra de Alvar Aalto, que a Gulbenkian trouxe a Lisboa, em 1982, que me fez decidir ser arquitecto; ou — é claro — o próprio edifício e estes jardins, que são tanto dele como da cidade, fruto de uma coincidência também muito rara de encontros entre os arquitectos paisagistas Ribeiro Telles e Viana Barreto, os arquitectos Athouguia, Alberto Pessoa e Pedro Cid, e... aqui devo dizer que existe uma omissão neste livro, quando são nomeados estes autores, pois faltam alguns outros, entre eles, o designer Daciano Costa, que completaram, numa coincidência também tão rara, muitos dos espaços deste edifício, tendo desenhado muitos dos móveis que o ocupam e definem.
Diz o pequeno texto que acompanha o livro, na contracapa, que a Gulbenkian é uma referência para gerações de arquitectos. De facto, não me parece que, a partir do momento em que se construiu este edifício e este jardim, possa existir um arquitecto português que não se tenha referido alguma vez a uma das características singulares da Gulbenkian, a propósito do seu próprio trabalho. Dou como exemplos: a implantação sobre o suave monte artificial, resultado da cobertura abaulada do magnífico estacionamento; o acerto e delicadeza da altura do muro que suporta o jardim e o relaciona com as ruas à volta; as qualidades do betão, tanto na exibição da estrutura como da sua própria matéria; as espantosas galerias técnicas subterrâneas; o conforto da biblioteca e da lição que as aberturas para o jardim nos dá de que a leitura pode não ser coisa ensimesmada; este auditório e o grande vidro aqui atrás de nós, antepassado nobre, em dimensão e situação, do vidro da Casa da Música, etc., etc. Como também de coisas que podem parecer-nos menos bem, como, na entrada principal do edifício sede, a relação entre a pequena dimensão do espaço coberto pela consola, os degraus e o guarda-vento — coisa óbvia quando chove.
A obra da Gulbenkian é, por tudo isto, uma referência para nós, mas sobretudo por ter sido e continuar a ser nestes tempos um exemplo de resistência, de crítica, de coisa viva.
O arquitecto Tadao Ando termina um célebre texto, Natureza e Arquitectura, de 1990, dizendo o seguinte: “A arquitectura é obra de indivíduos e realiza-se num contexto feito de história, tradição e clima; pertence ao universo da cultura e não ao mundo da civilização. Mas a produção da arquitectura está actualmente confiada mais a organizações do que a indivíduos; os computadores têm um papel cada vez mais importante e todas as coisas são quantificadas, a mediocridade e o convencionalismo anulam os sonhos e as paixões dos indivíduos, que tanta importância têm para a arquitectura. Porém, a arquitectura não pode limitar-se a reflectir os tempos, deve, sim, exercer sobre eles a sua crítica, fonte de autonomia do seu pensamento...”
Para nós arquitectos, que, ao fazer o nosso trabalho não podemos deixar de ter uma relação directa com as diversas formas de poder, esta crítica e esta autonomia em relação aos tempos tem uma importância vital. Mas poderíamos substituir neste texto a palavra “arquitectura” por muitas outras que fariam também sentido, agora talvez ainda muito mais do que em 1990. Pela palavra “fotografia”, por exemplo.
Gulbenkian é um livro de fotografia acerca de uma obra de arquitectura.
Considero a fotografia uma das artes mais misteriosas e que, tal como a arquitectura, atravessa actualmente um momento que me parece muito difícil. Das muitas razões deste mistério e desta dificuldade, que outros saberão dizer muito melhor do que eu, enumero apenas uma, que diz respeito directamente ao meu próprio ofício de arquitecto: mais de 500 anos depois da Construzione Legittima de Brunelleschi, muitas das imagens perspécticas que são as fotografias de arquitectura, passaram a ser dadas, não como um ponto de vista a partir de uma determinada posição — ou seja, de uma ideia, de uma visão — mas como simulacros inquestionáveis, impossivelmente neutros, de uma suposta realidade. Os próprios desenhos que se fazem para ilustrar um projecto de arquitectura ainda não construído passaram nestes tempos a ser vulgarmente produzidos — é esta a palavra certa — de maneira que não possam ser distinguidos de fotografias, não para explicitar uma ideia, evocando, com a necessária distância, a experiência da coisa que ainda não existe, mas sim para se substituírem a essa experiência — para que fiquemos convencidos, seduzidos, pela suposta realidade dessa representação. A fotografia de arquitectura — tal como a sua própria representação desenhada, cada vez mais a fingir-se fotográfica — tornou-se, em grande escala, numa espécie de substituto da experiência física, que é insubstituível para perceber os espaços, os lugares, a arquitectura.
As fotografias de André Cepeda, neste livro, não pretendem substituir-se a nada, convencer-nos do que quer que seja.
Creio que as duas fotografias que abrem e fecham este livro deixam isto — esta posição e esta recusa — bem claro. A primeira fotografia é uma mancha escura na qual se abrem pequenas marcas de folhagens, dois ou três troncos de árvores e um risco horizontal branco de luz que denuncia a presença de um vidro — a lente no interior da máquina — entre nós e a coisa vista. A última é uma imagem partida em dois, segundo um eixo de simetria horizontal, feita da mancha de um maciço de árvores e do seu reflexo num espelho de água, ambos desfocados. Focado, apenas um vidro estruturado verticalmente — este, existente no edifício — que se interpõe, mais uma vez, entre nós e a coisa vista.
Não seria preciso voltar a dizer que uma das características mais preponderantes do espaço físico da Gulbenkian é a presença visual constante dos jardins no interior do edifício através dos vãos envidraçados. Mas creio que o que estes dois vidros nestas duas fotografias nos dizem é também outra coisa. A presença inequívoca destes vidros parece indicar que, de entre os três elementos essenciais de uma imagem perspéctica — o olhar que vê, o objecto visto e a distância que há entre olhar e objecto — não podemos nunca esquecer a existência do plano do quadro, da superfície em que a imagem se fixa, seja ela a superfície do vidro de uma janela, de uma película, de um ecrã ou do papel. É nessa superfície e no trabalho sobre ela que tudo tem de acabar por estar, por se encontrar.
Os excertos das memórias descritivas e os cortes, plantas e alçados, redesenhados pelos editores-arquitectos João Carmo Simões e pela Daniela Sá, que se oferecem discretamente no interior das badanas, descrevendo rigorosamente o edifício, são muito importantes para sublinhar esta distância entre a representação e a coisa representada.
Toda a sequência das imagens que estão no livro corresponde depois a um vaivém pelo interior dos jardins e dos edifícios que, nunca deles saindo, é mais o percurso do caçador que estuda pacientemente um território, escolhendo as melhores posições para montar as suas armadilhas, do que a deambulação nervosa do cowboy pelas ruas de uma cidade a que acabou de chegar, com a arma sempre carregada, pronta a disparar. A todo o passo se contrapõe o vagar à pressa e a concentração à dispersão. Em todas as imagens, se esclarece ou baralha o conhecimento e a memória da nossa própria experiência desse território. Em todas elas, como nesta imagem, na capa do livro.
Para tentar explicar melhor isto, suponhamos que nos deparamos pela primeira vez com esta imagem, sem saber nada sobre ela, por exemplo, numa livraria em Tóquio. Depois de uma primeira reacção dos sentidos, inevitável, perante a sua beleza e a sua densidade, é muito provável que nos interrogássemos: Onde fica isto? Quando terá sido feito? Qual é a escala deste coberto e destes vãos? O que é isto? Será uma casa? Um templo? Esta fotografia, apesar de reunir os elementos menos secretos, os elementos mais icónicos da Gulbenkian — o lago, a vegetação luxuriante, as consolas, o betão aparente — a Gulbenkian não é nela imediatamente reconhecível. E, ao mesmo tempo, a Gulbenkian torna-se, nesta imagem, surpreendentemente evidente. Esta surpresa e este reconhecimento, violentamente simultâneos, que imagens como estas provocam não podem deixar de reorganizar, para sempre, o nosso conhecimento, a nossa memória, a nossa própria experiência insubstituível. Porque não são uma ilustração, são outra coisa.
No século XIII, o imperador mongol Kublai Khan sonhou uma noite com um palácio que mandou construir de acordo com essa visão. Trezentos anos mais tarde, um monge escritor inglês refere este palácio num livro que, por sua vez, o poeta Coleridge lê cem anos depois e nessa mesma noite sonha com um poema do qual consegue escrever apenas o início. É Jorge Luís Borges que 200 anos mais tarde nos conta isto num texto que é mais um elo que se juntou â corrente que começou com o sonho de um imperador e que poderá continuar, não sabemos quando nem como. O sonho de um dá lugar à obra de outro, que dá lugar ao sonho de outro ainda, e por aí fora.
Um livro como este só pode ambicionar fazer parte desta espécie de movimento.
Resta-me dar os parabéns ao fotógrafo André Cepeda e aos editores João Carmo Simões e Daniela Sá por este livro, e fazer votos para que o trabalho de cada um deles nunca se limite a reflectir os tempos, mas sim a exercer sobre eles a sua crítica, fonte de autonomia do seu pensamento, como diz Tadao Ando tão bem.
E quero também dar os parabéns à Fundação Gulbenkian por este aniversário, e fazer votos para que a sua acção fértil e decisiva possa continuar a contribuir, não para reflectir, mas sim para iluminar estes tempos de ganância e — digo como diz George Steiner porque não conheço expressão mais acertada — estes tempos de fascismo da vulgaridade.
Gulbenkian
....One of the most referential architectural spaces in Lisbon, the Gulbenkian Foundation complex is a Portuguese architectural masterpiece made possible by the collective work of five architects. Through specially taken photographs by André Cepeda and edited drawings, this book shows why the project has been, since de 1960s, a reference for generations of architects. ..Um dos espaços de referência em Lisboa, a Fundação Gulbenkian nasceu do trabalho colectivo de cinco arquitectos. Com imagens de André Cepeda, desenhos e memória descritiva, este livro propõe revelar como este projecto é, desde a década de 60, uma referência para gerações de arquitectos. ....